O segundo grande ponto de inflexão da mobilidade

Dinâmicas radicalmente novas em ação no início do século 20 transformaram os automóveis e, por sua vez, também o mundo. Neste artigo, mostramos porque o próximo grande ponto de inflexão está bem próximo, trazendo mudanças igualmente profundas.

Há uma frase bem conhecida atribuída a Henry Ford que, na verdade, ele nunca disse; ainda assim, os historiadores afirmam que é bem provável que ele acreditasse nela: “Se eu tivesse perguntado às pessoas o que elas queriam, elas teriam me respondido cavalos mais velozes.”1 Esta história faz sentido, claro, porque sabemos o que os consumidores daquela época – em torno do ano de 1900 – acreditavam que mobilidade deveria ser, e sabemos o que a mobilidade realmente passou a significar a partir de 1920.

E também o que significa ainda hoje. De fato, é impressionante o tanto que durou o paradigma automobilístico de Ford (e de seus contemporâneos). Há 100 anos, mobilidade trazia à mente carros, caminhões, vagas para estacionar, o preço da gasolina na bomba, ruas de cidades e estradas intermináveis. E mais: a “máquina da liberdade”, transporte de massas, revendas de veículos, motores de combustão interna. Engarrafamentos, acidentes e poluição.

No primeiro grande ponto de inflexão, as dimensões fundamentais do transporte—custo, conveniência, experiência do usuário, segurança e meio ambiente—viram “mobilidade” e “carros” se tornarem praticamente sinônimos. Isso foi uma mudança dramática em relação às centenas de anos que os precederam, durante os quais mobilidade sobre a terra significava cavalos, que as pessoas necessitavam em números cada vez maiores. Problemas de “emissão” distintos dos de hoje eram uma consequência imprevista dessa realidade. Em 1894, o Times de Londres apresentou os números: se as taxas atuais se mantiverem as mesmas, em meados dos anos de 1940 teremos cerca de 2,5 metros de bosta de cavalo acumulada nas ruas da cidade.2

Em 1894, o The London Times publicou estes dados: pelos números atuais, até a década de 1940 quase três metros de esterco se acumularão nas ruas.

Os incríveis desenvolvimentos dos anos de 1900–20 representaram o primeiro ponto de inflexão da mobilidade. Eles nos levaram do vapor aos motores de combustão interna (ICEs, na sigla em inglês), da “Grave Crise da Bosta de Cavalo” de 1894 ao “Grande Petróleo”, e de automóveis premium para alguns poucos aos carros produzidos em massa para milhões. Esses desenvolvimentos também alteraram e até mesmo criaram negócios, indústrias e entidades governamentais, que se desenvolveram em paralelo, mas separadamente da indústria automobilística: oficinas mecânicas, departamentos de estradas de rodagem, postos de gasolina, lava-rápidos e trens de passageiros entre grandes centros e seus subúrbios e cidades-satélite, para citarmos apenas alguns. E esse cenário vem perdurando há décadas.

Mas por quanto tempo mais? Até 2030, veremos desenvolvimentos que podem ser tão profundos quanto aqueles de cem anos atrás. Transformações radicais – mudanças da magnitude da de “cavalos a carros”, mudanças na formas de “pensarmos a mobilidade” – estão vindo aí, ainda mais rápidas e em uma diversidade de dimensões. As características da mobilidade no segundo grande ponto de inflexão serão substancialmente – e não apenas marginalmente – melhores. Veículos elétricos e autônomos, redes de estradas mais inteligentes e interconectadas, novos serviços e interfaces para o consumidor e um cenário competitivo dramaticamente diferente, no qual gigantes de tecnologia, startups e montadoras se combinam e se misturam são apenas algumas das mudanças previstas. Melhorias radicais em termos de eficiência de custos, conveniência, experiência do usuário, segurança e impacto ambiental devem juntas criar disrupções em uma variedade de modelos de negócios em uma escala quase inconcebível (quadro).

Quadro
Mobility’s second great inflection point

Com um pouco de sorte, isso será o que as pessoas realmente querem—não “cavalos mais rápidos”, mas algo qualitativamente diferente e melhor. Chamamos essas mudanças iminentes de “segundo ponto de inflexão da mobilidade”. Neste artigo, mostraremos porque acreditamos que ele está chegando, começando por rever o ponto de inflexão ocorrido há 100 anos, incluindo suas consequências não intencionais e as forças em ação que contribuem fortemente para um novo paradigma. Um segundo artigo, que acompanha este, apresenta as características prováveis do ecossistema de mobilidade que está emergindo, junto com o impacto que ele deve ter para as empresas e a sociedade (ver “Reimagining mobility: A CEO’s guide”, no site McKinsey.com).

Como ocorre com muitas das grandes mudanças, o cenário é convincente tanto de longe como de perto. Mais de duas dúzias de nossos colegas da McKinsey, além de alguns dos executivos que estão liderando essas mudanças para o futuro, trazem uma visão mais clara das mudanças tecnológicas que os líderes devem ter no radar, as variações dessa história nas diferentes regiões do mundo e de que forma as cidades como conhecemos hoje deverão possivelmente mudar. Ninguém sabe ao certo como ou quando essas mudanças ocorrerão. O que tem ficado cada vez mais claro, entretanto, é que a mudança está vindo mais rapidamente do que a maioria de nós imaginava ser possível há alguns anos.

Parte 1

O primeiro grande ponto de inflexão

Ao discutir carros e linhas de tempo, vale a pena lembrar que muitos e muitos anos se passaram até que o carro se tornasse algo comum. O primeiro veículo movido a vapor foi desenvolvido no final do século 17, mas era demasiadamente pequeno para levar pessoas ou carga. Foram necessários dois séculos para engenhocas com motores de combustão interna chegassem às ruas. No início do século 20, os veículos estavam progredindo, passando dos “bugues com cavalos” às mais sofisticadas “locomotivas de estradas” — carros autoalimentados.

No entanto, até o início do século 20, esses veículos eram produzidos principalmente para o mercado da “classe privilegiada”. O que fez o Modelo T ser tão transformador quando começou a ser produzido em outubro de 1908 não foi o fato de ele introduzir a linha de montagem (o que ele efetivamente não fez) ou de ser um salto inconcebível em termos tecnológicos (o que ele não era). Ao contrário, foi a combinação de confiabilidade, inovação e, especialmente, acessibilidade em termos de preço do Modelo T que permitiu dar às massas mobilidade personalizada e mecanizada. É bem conhecido o fato de Henry Ford fazer questão de pagar aos seus funcionários US$5 por dia; assim, eles também poderiam comprar um. Seu carro custava cerca de US$500, menos de US$10.000 em valores atuais.

Ao nos aproximarmos do próximo ponto de inflexão, os carros se tornarão centros de dados produtivos e, por fim, componentes de uma rede de mobilidade mais ampla.

Assim surgiu a máquina da liberdade, que – ao dar às pessoas o que elas queriam (custos de transporte mais baixos, maior conveniência e uma melhor experiência de direção), mesmo considerando algumas características negativas (em particular no que se refere à segurança e ao meio ambiente) – deu início a uma das maiores histórias de sucesso do mundo corporativo. Em 1900, aproximadamente 4 mil automóveis foram produzidos nos Estados Unidos; nenhum deles era um caminhão. Durante a década de 1910, o número de carros nas diferentes regiões dos EUA começou a deixar para trás o número de cavalos e bugues. Por volta de 1920, os Estados Unidos tinham mais de 9,2 milhões de veículos motorizados registrados, incluindo mais de um milhão de caminhões.

Mas simplesmente contar carros e caminhões não é eficiente para capturar a magnitude do primeiro grande ponto de inflexão e a imensidade dos seus efeitos secundários. Do lado esquerdo da curva de crescimento estavam o vapor e o feno (e os pés), ruas sujas e de terra, cidades cheias de bosta de cavalo e vilarejos no campo sem qualquer atrativo. Depois da inflexão, vieram a gasolina, ruas pavimentadas e autoestradas, hotéis de beira de estrada, restaurantes de fast food e a cultura dos subúrbios. A mobilidade não significava simplesmente carros, mas também fabricantes e fornecedores de peças, mecânicos, táxis, ônibus, trens de passageiros ligando a cidade aos subúrbios e a cidades-satélite e, com o tempo, aeroportos na região metropolitana.

A indústria automobilística criou milhões de empregos e novos pools de lucratividade imensos. Três das dez maiores receitas reportadas à Receita Federal americana (Internal Revenue Service) em 1924 foram de titãs da indústria automobilística. Tais desenvolvimentos eram mais do que simplesmente econômicos – eram também sociais. Pessoas de todos os níveis passaram cada vez mais a se importar com o que os vizinhos tinham e a se esforçar para comprar carros melhores e mais novos, escolhendo entre uma variedade crescente de modelos e marcas. Alfred Sloan, presidente da GM, chamou isso de “um carro para cada bolso e propósito” e estimulou o ciclo por meio da “obsolescência dinâmica”.

Parte 2

Custos e consequências

Mas as consequências negativas foram igualmente imensas. Os resultados dos acidentes de trânsito são horripilantes. Mais de um milhão de pessoas são mortas anualmente nas estradas do mundo todo; globalmente, lesões decorrentes de acidentes de carro são uma das principais causas de morte para pessoas com menos de 30 anos; mortes em função da poluição do ar têm crescido consistentemente em todas as regiões do mundo; e as emissões de carbono, que tinham permanecido estáveis nos últimos anos, parecem ter voltado a crescer.3 Mesmo em cidades com redes elétricas bem desenvolvidas e sistemas robustos para o transporte de massas, o trânsito pode ser responsável por até 25% das emissões de carbono (23% na cidade de Nova York). Em cidades do mundo em desenvolvimento, esse percentual é até maior – no Rio de Janeiro chega a 32%, enquanto na Cidade do México ele equivale a 45%.4

Enquanto isso, tráfego intenso e congestionamentos reduzem em 2% a 5% o PIB nacional, medido em termos de tempo perdido, gastos desnecessários de combustível e um maior custo de fazer negócios. E o que se perde não deve ser contabilizado apenas em dinheiro: o tempo mais longo dos deslocamentos entre casa e trabalho em função do trânsito está correlacionado a níveis mais baixos de satisfação com relação à vida e maior risco de ansiedade, pior condicionamento físico, obesidade, pressão arterial elevada e outras doenças e sintomas físicos.

Almost 25 percent of carbon emissions in New York City come from transportation. In developing cities such as Rio de Janeiro and Mexico City, the levels are even higher. (Pictured here: Mexico City)

Soma-se ainda a esta carga uma infraestrutura abaixo dos níveis considerados adequados – e a situação vem piorando cada vez mais.  Nos Estados Unidos, onde a rede de transporte indiscutivelmente sofre das “desvantagens de ter saído na frente”, muitas das artérias do país estão em péssimo estado. Na Europa, onde as condições de infraestrutura podem variar substancialmente, grandes projetos têm se tornado cada vez mais caros e difíceis de serem “vendidos” aos eleitores. Mesmo na Ásia, que em muitos aspectos possui a infraestrutura mais nova do mundo, o rápido crescimento econômico levou a redes de transporte que muitas vezes se parecem a uma colcha de retalhos e têm dificuldade de se manter atualizadas.

Além disso, a mobilidade pode estar revertendo a dois níveis – aqueles que têm e aqueles que não têm. Embora os serviços de transporte por aplicativo móvel pareçam tornar a mobilidade sob demanda acessível a uma fatia maior da população, os dados demográficos de clientes mostram que a base tende a ser composta mais de usuários urbanos de nível educacional mais elevado. E, se assumirmos que as pessoas se deslocam mais de 5.600 quilômetros por ano (o que ocorre com de 90% a 95% dos donos de carros nos EUA), o custo por quilômetro pode ser muito maior do que o de ter um carro próprio. O preço do congestionamento e das vias rápidas pagas significa que somente os ricos desfrutam do uso ilimitado de suas máquinas de liberdade. Em algumas cidades, o acesso a estacionamento é restrito àqueles que vivem em certas áreas; se você não tem dinheiro para viver nelas, você pode ser legalmente impedido de estacionar nesses locais. Os impeditivos são reforçados por pedágios em estradas e pontes e o custo crescente do transporte público e dos órgãos responsáveis, que costumam operar no prejuízo de qualquer forma.

Parte 3

Novas fronteiras para a inovação da mobilidade

Um conjunto de forças inovadoras está se reunindo com o potencial de mitigar alguns desses custos e tornar os benefícios ainda melhores. Obviamente, a indústria automotiva foi sempre um motor de inovação de muitas maneiras. Um carro nunca é simplesmente uma “caixa de metal”: ele integra múltiplas tecnologias – química, mecânica, elétrica e, cada vez mais, digital. Há cinco anos, um carro médio de luxo já possuía aproximadamente sete vezes mais códigos de programação do que um Boeing 787. Ao nos aproximarmos do próximo ponto de inflexão, os carros se tornarão centros de dados produtivos e, por fim, componentes de uma rede de mobilidade mais ampla. Isso já é evidente em sistemas de navegação em tempo real e com base em dados e aqueles usados para contratar um meio de transporte via celular. Essas tecnologias fazem parte da primeira marola de uma onda cada vez maior de inovações voltadas à mobilidade, que por si só já é uma impressionante confluência de descobertas tecnológicas globais.

Com base nos saltos incríveis da tecnologia – incluindo o poder da computação, a geração de dados por meio de câmeras e sensores e a armazenagem de dados praticamente gratuita – a probabilidade de haver inovações no setor automotivo sem igual no mercado até 2030 é bastante alta. O blockchain é um exemplo que chama a atenção, com múltiplas aplicações em potencial que podem mudar completamente o jogo, incluindo a cobrança de tarifas para taxis-robôs, o pagamento de pedágio e estacionamento e um “disco de ouro” que registra os dados de propriedade, manutenção e histórico de uso dos veículos. Governos, por sua vez, estão passando a demandar a implantação de melhorias tecnológicas para reduzir emissões de carbono e melhorar a segurança. Todos os carros dos EUA hoje precisam ter câmeras traseiras, e os reguladores estão incentivando – e mesmo exigindo – outros itens de sistemas avançados de assistência ao motorista, ou ADAS na sigla em inglês. Mesmo sem pressão governamental, os fabricantes de veículos têm grande probabilidade de inovar como forma de autopreservação no mercado. Pesquisas da McKinsey mostram que aproximadamente dois em cada cinco clientes estão dispostos a mudar de marca de carro para obter melhores funções de conectividade. Isso equivale ao dobro do que se via a apenas quatro anos atrás.

Titãs de tecnologia estão investindo agressivamente em inovação de mobilidade. A Tesla está provocando o mercado, e as montadoras tradicionais vêm investindo pesado em tecnologia e criando portfólios de parcerias. Grande parte da atividade se concentra em torno de tecnologias automotivas conhecidas pelo acrônimo ACES—veículos que são autônomos, conectados, elétricos e compartilhados (autonomous, connected, electric, shared no original em inglês). (Para saber mais sobre este tópico, ver “The trends transforming mobility’s future”, no site McKinsey.com). E não são só os grandes participantes da indústria que estão interessados em ACES. Um estudo da McKinsey – Start-up and Investment Landscape Analysis – levantou que mais de US$200 bilhões já foram investidos em tecnologia ACES desde 2010. Somados aos investimentos em P&D por parte de montadoras e fornecedores de equipamentos originais – cerca de US$125 bilhões somente em 2017 – temos os ingredientes para uma revolução nos transportes e nos empregos associados ao setor (para saber mais sobre as implicações para o emprego, ver o quadro lateral “Redefinindo o que significa ser uma ‘pessoa aficionada por carros’”). A seguir apresentamos um retrato das inovações em curso.

Autonomia

Tecnologias de veículos autônomos logo deverão transformar o significado de “andar” de carro. A autonomia – expressa em um esquema da Sociedade de Engenheiros Automotivos (Society of Automotive Engineers) que varia do nível 0 (controle total do motorista em todos os momentos) ao nível 5 (desempenho em tempo integral por um sistema de direção automatizado, incluindo todos os aspectos de direção em qualquer condição de ruas e estradas) – atualmente está sendo buscada em duas frentes distintas. No espaço privado, veremos a introdução de sistemas de funcionamento de nível 3 em vários veículos mais luxuosos nos próximos um ou dois anos. No espaço comercial, veículos de nível 4 podem ser responsáveis por 60% a 70% de todos os quilômetros rodados em mercados como o dos Estados Unidos na primeira metade da década de 2020, contanto que venham com um backup remoto para quando os veículos encontrarem alguma situação com que não saibam lidar e precisem da intervenção humana. No entanto, a real adoção por parte do mercado dependerá de outros fatores, tais como regulamentação, preferências dos clientes e cenário competitivo.

Conectividade

A tecnologia para conectividade – que os usuários de carros experimentam durante sua jornada – também deverá ter avanços importantes. Automóveis de ponta hoje podem usar o perfil pessoal do motorista para acessar serviços em plataformas digitais externas, como Android Auto e Apple CarPlay. Melhorias dramáticas logo mudarão a experiência de conectividade, que passará de reativa a preditiva. Os ocupantes poderão dispor de informações e entretenimento personalizados por meio de voz e gestos com as mãos – na verdade, um diálogo com o veículo para receber recomendações proativas sobre serviços e funções. Até o início da década de 2020, os sistemas de conectividade deverão se tornar “choferes virtuais”, com inteligência artificial cognitiva capaz de antecipar e atender às necessidades dos usuários.

Até o início da década de 2020, os sistemas de conectividade deverão se tornar “choferes virtuais”, com inteligência artificial cognitiva capaz de antecipar e atender às necessidades dos usuários.

Com o tempo, também as estradas poderão fazer isso. Sensores inseridos nos veículos se comunicarão com semáforos, placas de ruas e outros carros, o que lhes permitirá rodar mais próximos uns dos outros e diminuirá substancialmente o tempo de deslocamentos. Com a mudança das condições climáticas e o aumento ou a redução no volume de carros, as rotas poderão ser otimizadas quase que instantaneamente. Fluxos de tráfego mais racionais não somente reduzirão o tempo de deslocamento, como também colocarão menos estresse em infraestruturas como pontes, túneis e autoestradas, diminuirão em muito a frequência de acidentes e economizarão minutos preciosos para veículos de atendimento de emergências que precisam se deslocar com rapidez.

Centros de controle de veículos (vehicle-control centers, ou VCCs no original em inglês) podem também melhorar muito o trânsito. Predominantemente baseados em nuvem e operados por inteligência artificial, os centros de controle de veículos serão análogos aos centros de controle de tráfego aéreo. O número de veículos autônomos no trânsito dependerá do número de veículos que um centro pode processar, mas a resposta mais fácil e rápida para isso é ‘muitos’. E o número de passageiros será superior ao número de veículos de passageiros. Isso ocorrerá em função tanto dos veículos autônomos compartilhados, que poderão ser utilizados até 80% do tempo (versus o nível atual de 4% dos carros não autônomos privativos), como dos prováveis aumentos do uso por pool – deslocamentos compartilhados com pontos de partida e chegada comuns. Com os centros de controle de veículos e outras plataformas para inteligência artificial, as viagens compartilhadas poderão otimizar os locais para atender um número maior de pessoas com mais conveniência.

Eletrificação

Melhorias substanciais em tecnologias de baterias e do uso de renováveis, além da evidente vontade regulatória de muitos governos de impor limites regionais e globais para emissões de carbono, significam que a predominância da tecnologia de motores de combustão interna deverá provavelmente acabar. Isso significa novas oportunidades para aqueles que operam nos setores de mineração e siderurgia, dentre outros. Embora se espere que os subsídios governamentais para veículos elétricos sejam descontinuados com o tempo nos Estados Unidos, na Europa e na China, os mandatos de eletrificação parecem ter vindo para ficar. Os reguladores europeus estão trabalhando ativamente para reduzir as emissões de CO2 de veículos e elevaram as multas para aqueles que descumprirem as normas. A China tem por meta a venda de sete milhões de carros elétricos até 2025.  Embora as metas do país até agora tenham sido mais sugestões do que regra, esperamos que a China instaure mecanismos de execução durante a próxima década. Além disso, pessoas próximas do governo destacam a possível intenção de avançar e resolver os desafios técnicos e de produção dos modernos trens de motores de combustão interna.

Atualmente, sem subsídios, um carro sedã elétrico de luxo básico custa substancialmente mais do que um veículo com motor de combustão interna. Assim, não é surpresa alguma que a maior parte dos consumidores não esteja disposta a pagar por eles. O custo dos veículos elétricos—principalmente (mas não exclusivamente) em função do custo por quilowatt-hora da bateria—deverá continuar a cair bastante para gerar o empuxo de consumo essencial que permitirá uma adoção mais generalizada de veículos elétricos, de forma a ir além dos casos de uso e dos segmentos específicos que preferem este tipo de veículo.

Solar-power plants cost less than one-tenth to construct today than they did only seven years ago.

Se isso ocorrer, a energia renovável deverá ajudar a equilibrar o aumento crescente da demanda por eletricidade. Novas plantas de energia solar sendo contratadas hoje estão cotadas a somente 1/10 do custo que apresentavam há apenas sete anos. E mesmo sem melhorias dramáticas, se as tendências continuarem no ritmo atual, as energias solar e eólica poderão aumentar dos atuais 4% de geração de energia para até 36% do fornecimento global de energia até 2035. Essa trajetória de crescimento economizaria US$350 bilhões em gastos com recursos.

Compartilhamento

Embora o compartilhamento de deslocamentos traga o risco da desintermediação da relação das montadoras com seus consumidores, até o momento o gasto com o compartilhamento de trajetos – e também de toda a contratação de viagens via internet – é maior do que muitos consumidores podem pagar. Como o pagamento do motorista é responsável pela maior parte do custo, se o compartilhamento de trajetos em veículos autônomos for capaz de eliminar o motorista da equação, seria possível tornar as viagens mais baratas. Além disso, os veículos autônomos (como os táxis em Nova York, que percorrem em média mais de 112 mil quilômetros por ano) se deslocarão bem mais do que os cerca de 24 mil quilômetros anuais dos veículos privados. O custo variável menor deverá reduzir em muito o custo total de propriedade, apesar dos custos fixos mais altos (i.e., o preço original do carro).

Além disso, os automóveis de hoje são desenhados para um número maior de casos de uso. Ao reduzir as capacidades do carro, também se diminui os custos. Um número maior de pessoas contratando transporte pela internet significa que as montadoras precisarão lidar com um número menor de casos de uso – o que, por sua vez, permite que se construa e introduza no mercado veículos mais acessíveis em termos de custo e criados para propósitos específicos. Passar de um sistema de “pagar por veículo” para um sistema de “pagar por quilômetro” tem como resultado positivo reduzir o preço de ambos.

Finalmente, avanços em termos de design devem ajudar a superar a compreensível resistência de alguns usuários com relação a compartilhar trajetos com estranhos; compartimentos nos veículos podem permitir maior privacidade, entretenimento mais interessante customizado e possibilidade de níveis de produtividade que podem chegar perto do que temos nos escritórios.

Parte 4

Forças sociais

A digitalização (que é responsável por novos meios contínuos de engajamento com serviços de mobilidade) e a eletrificação (que cada vez mais será a fonte de energia de veículos) são forças sociais e devem ser reforçadas. Considere a mudança que é deixar de entender a mobilidade como sendo “comprar um carro” e passar a ser “ir do lugar A ao lugar B”. A transição deverá ocorrer em etapas, com as famílias provavelmente começando por reduzir o número de carros até deixar de possuí-los.

Isso não poderia acontecer sem que houvessem forças demográficas e filosóficas mais profundas atuando. Ainda que ter um carro continue a ser um símbolo poderosos de status em mercados importantes do mundo todo, e que a produção global de veículos de passageiros tenha aumentado quase três vezes mais do que a taxa de crescimento populacional entre 1999 e 2016, há sinais de que as pessoas da chamada Geração Y e os millenials estejam mais abertas a diferentes formas de possuir e usar carros, menos fidelizadas a marcas e com menor probabilidade de preferir viajar para ter reuniões presenciais em vez de interagir online. Nos últimos oito anos observamos uma redução no percentual de norte-americanos com carteira de motorista em todas as faixas etárias, sendo a redução mais expressiva nos grupos de 16 a 19 anos de idade (–11,8%) e de 20 a 24 (–6%). Além disso, a compra de novos carros tem caído em todas os grupos demográficos de consumidores dos Estados Unidos, com exceção daqueles com mais de 70 anos.

Mudanças na forma das pessoas trabalharem também são iminentes. Um número maior de pessoas trabalhando em casa significa menos deslocamentos, o que por sua vez reduz os quilômetros percorridos e a necessidade de um automóvel. Para muitas pessoas, o deslocamento entre casa e trabalho é a principal razão para ter um carro. Com o surgimento de alternativas a esse tipo de deslocamento, ao mesmo tempo que se enfrenta grande volume de tráfego, níveis insalubres de poluição atmosférica, possibilidades reduzidas de moradia, ainda menos espaços para estacionar e uma infraestrutura bem abaixo dos padrões, o trajeto casa-trabalho-casa se torna menos atraente, e o ímpeto de possuir um carro acaba ficando menor.

Simultaneamente, a vontade de resolver os problemas de nossas cidades vem aumentando. As populações urbanas, historicamente na vanguarda da mudança, já estão sendo mais receptivas a soluções como compartilhamento de viagens e automóveis, além de veículos elétricos. Oslo planeja banir os carros do centro da cidade ainda este ano. Madri implementou restrições aos veículos no centro da cidade em novembro do 2018 e planeja expandir consideravelmente as zonas livres de veículos até 2020. E muitas cidades alemãs hoje já banem veículos a diesel mais antigos. À medida que as cidades avançam, os países estão adaptando padrões mais rigorosos e consistentes.

Ouça”, disse o prefeito, abrindo as janelas do seu escritório. “O que se escuta da rua lá embaixo são vozes humanas. Antes de eu me tornar prefeito, 14 mil carros passavam nesta rua diariamente. Há mais carros passando por esta cidade em um único dia do que pessoas vivendo aqui”.

Miguel Anxo Fernández Lores, prefeito de Pontevedra, Espanha; extraído de “For me, this is Paradise: Life in the Spanish city that banned cars”, The Guardian

Em muitos sentidos, a história dos automóveis e a história do século 20 se confundem. É a história do progresso, com todos os seus trade-offs: custos de transporte mais baixos, maior conveniência e uma experiência de consumidor muitíssimo superior, bem como maiores riscos para a segurança humana e efeitos deletérios para o meio ambiente que compartilhamos com os demais.

A nova narrativa que vem surgindo considera as mesmas dimensões – nenhuma delas será resolvida perfeitamente, mas todas mudarão para melhor rapidamente. De fato, tão rapidamente que o próximo grande ponto de inflexão logo estará aí.

As implicações para o transporte, para o crescente leque de empresas que ajudará a operacionalizá-lo e para os negócios e a sociedade como um todo ajudarão a definir o século 21 e serão o foco de nosso próximo artigo.

CGI illustrations created expressly for McKinsey by Peter Crowther

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