É um dado alarmante: 33% a 40% dos alimentos do mundo são perdidos ou desperdiçados a cada ano. Este fato, que já seria devastador em tempos menos extremos, adquire urgência ainda maior hoje, à luz de uma iminente crise global de alimentos resultante dos efeitos em cadeia da guerra na Ucrânia, da COVID-19 e das mudanças climáticas. Hoje, uma em cada nove pessoas no mundo já não tem o suficiente para comer – são mais de 800 milhões de indivíduos passando fome. E as consequências das perdas e do desperdício de alimentos só vão piorar. (“Perdas” de alimentos ocorrem na colheita ou logo após, enquanto o “desperdício” ocorre depois que os alimentos chegam ao varejista ou consumidor. Veja Box, “Perda de alimentos é o mesmo que desperdício de alimentos?”)
As perdas de alimentos, em si, já são ruins o suficiente, mas os efeitos secundários também são assustadores: o consumo de água associado às perdas e desperdício de alimentos equivale a aproximadamente um quarto do suprimento de água doce do mundo. As emissões de gases do efeito estufa (GEE) decorrentes de perdas e desperdício de alimentos representam 8% do total global, ou pelo menos quatro vezes as emissões do setor de aviação.
Até o momento, a maioria das iniciativas de larga escala para entender e resolver o problema tem focado o desperdício de alimentos, em grande parte porque é mais visível: as pessoas veem alimentos sendo desperdiçados em lojas, restaurantes e residências. Mas calcula-se que até metade dos alimentos que não chegam a ser consumidos por seres humanos – no valor estimado de US$ 600 bilhões – se perde nas fazendas ou proximidades, durante ou logo após a colheita. A redução das perdas de alimentos deve, portanto, ser tratada como uma prioridade social e ambiental.
Mais insights da McKinsey em português
Confira nossa coleção de artigos em português e assine nossa newsletter mensal em português.
E deve também se tornar uma prioridade de negócios. O exame aprofundado que fizemos da cadeia de suprimentos alimentar desde a fazenda até o varejista revela que as perdas de alimentos resultam de ineficiências e seus custos ocultos muitas vezes equivalem ou superam o lucro líquido dos varejistas – até mesmo daqueles de melhor desempenho.
A boa notícia é que reduzir as perdas de alimentos é perfeitamente viável. Nossa pesquisa mostra que fabricantes e varejistas de alimentos, por estarem no centro da cadeia de valor alimentar, encontram-se na posição ideal para liderarem os esforços globais de redução das perdas de alimentos. Acreditamos que, se trabalharem uns com os outros e com todos os integrantes da cadeia de valor, poderão reduzir as perdas de alimentos em 50% a 70%. Com isso, dois terços dos alimentos que seriam perdidos poderiam ser redirecionados para o consumo humano; o terço restante seria destinado a usos alternativos, como materiais de base biológica ou ração animal.
E as recompensas comerciais seriam significativas: as empresas colheriam benefícios econômicos e de fluxo de caixa, e ao mesmo tempo reduziriam sua pegada de emissões de escopo 3. Nossa pesquisa mostra que os varejistas poderiam reduzir o custo das mercadorias vendidas (CMV) em 3% a 6%, e os fabricantes em 5% a 10%. Varejistas e fabricantes de alimentos poderiam capturar $80 bilhões em novo potencial de mercado se desenvolvessem novos negócios a partir de alimentos que, de outra forma, seriam perdidos. Além disso, poderiam reduzir suas emissões de CO2 e os custos associados em 4% a 9%.
Como as perdas de alimentos são um problema crescente, envolvendo inúmeros players e processos, abordagens isoladas terão impacto limitado. Para efetuar grandes mudanças, todos os stakeholders terão que trabalhar juntos. O esforço e o investimento valerão a pena, em muitos níveis.
Onde e como se perdem alimentos?
Mais de dois bilhões de toneladas de alimentos são perdidos ou desperdiçados a cada ano. Cerca de metade é descartada cadeia de valor acima, mais perto do cultivo – durante a colheita, no manuseio e armazenamento após a colheita e nas etapas de processamento (Quadro 1).
Embora carnes e laticínios tenham alto impacto ambiental por unidade produzida (são necessários quase 8000 litros de água para produzir um quilo de carne bovina, por exemplo), carnes representam apenas cerca de 3% das perdas de alimentos; os laticínios, outros 5%. Três outras categorias de alimentos – frutas e hortaliças, cereais, e raízes e tubérculos – são responsáveis pela maior parte das perdas de alimentos, das emissões de CO2 associadas e do uso de água (Quadro 2). Essas categorias devem, portanto, ser o foco dos esforços de redução de perdas.
Onde, exatamente, na cadeia de suprimentos, se perdem os alimentos e quais fatores contribuem para isso? Em colaboração com o Consumer Goods Forum e seus membros, e trabalhando de perto com os principais varejistas e distribuidores de alimentos europeus, investigamos a jornada da fazenda ao varejista, utilizando tomates como nosso caso de teste.
Escolhemos os tomates porque 50 a 75 milhões de toneladas de tomates são perdidas cadeia de valor acima a cada ano – mais do que qualquer outra fruta ou hortaliça. Além disso, as lições aprendidas com a jornada do tomate podem ser extrapoladas para outras categorias de produtos frescos. Tomates são cultivados e consumidos em todo o mundo, estão disponíveis durante o ano inteiro, podem ser ingeridos frescos ou processados, precisam estar em conformidade com certos padrões cosméticos (cor, forma etc.) e se assemelham a várias outras categorias de produtos frescos em termos de perecibilidade.
Estudamos as jornadas do tomate em mercados desenvolvidos e em desenvolvimento – tomates vendidos in natura e tomates enviados para a cadeia de suprimentos processados, tomates plantados no campo e tomates cultivados em estufas nos mercados desenvolvidos. O Quadro 3 ilustra o que acontece com os tomates cultivados no campo em mercados desenvolvidos e enviados aos varejistas para serem vendidos in natura em suas lojas. Como podemos ver, nos países desenvolvidos, de cada 100 tomates, apenas 59 a 72 chegam às prateleiras das lojas. No mundo em desenvolvimento, os números são ainda mais sombrios: apenas 35 a 58 chegam às lojas.
Estimamos que, na colheita, um terço das perdas decorre de um excedente de produção (isto é, o agricultor produziu mais alimentos do que tinha condições de vender); outro terço consiste em alimentos que, embora comestíveis, não atendem às especificações dos clientes; e o terço restante se perde devido a danos e avarias que tornam o alimento não comestível. Em suma, dois terços das perdas são perfeitamente comestíveis e poderiam ser redirecionados com segurança para o consumo humano.
Nossa pesquisa revelou que algumas perdas de alimentos resultam de fatores exógenos, como eventos climáticos ou práticas impróprias em algum estágio da cadeia de suprimentos (como manutenção inadequada de equipamentos), mas parte das perdas decorre das interdependências e interações entre os integrantes da cadeia de valor. Os agricultores podem produzir em excesso porque não sabem ao certo qual é a demanda do mercado, enquanto que o fornecimento é pouco transparente para muitos fabricantes e varejistas. Especificações exageradamente rigorosas dos clientes podem levar a um excessivo outgrading1 pós-colheita. A maioria dos contratos de procurement não cria incentivos para se reduzir as perdas de alimentos.
Resolver o problema das perdas de alimentos exigirá, portanto, mudanças fundamentais no modo como os vários stakeholders trabalham juntos. Se considerarmos apenas os tomates, o impacto potencial será uma economia de mais de 40 milhões de toneladas por ano. Globalmente, as emissões de CO2 associadas às perdas de tomates cairiam entre 60% e 80%. E se isso é possível com tomates, também é possível com outras categorias de alimentos.
Como as empresas podem transformar as perdas de alimentos em grandes ganhos
Como as perdas de alimentos ocorrem principalmente na fazenda, o que fabricantes e varejistas de alimentos podem fazer a respeito? Na verdade, podem fazer muita coisa. Um plano de ação eficaz implicaria, primeiro, definir uma linha de base e fixar metas; em seguida, o desenvolvimento e implementação sistemáticos de iniciativas; e, por fim, a instituição de facilitadores que tornem as mudanças duradouras.
Em última análise, os esforços para reduzir as perdas de alimentos exigirão uma mudança de mentalidade da parte de todos os stakeholders. Os fabricantes e varejistas de alimentos precisarão ver as perdas de alimentos como resultado de ineficiências e oportunidades perdidas em produção, compras, P&D, cadeia de suprimentos e vendas – e não como um custo inevitável de fazer negócios ou um assunto restrito que diz respeito apenas ao departamento de sustentabilidade. Todos precisam ver a redução das perdas de alimentos como um pool potencial de valor, ou seja, uma oportunidade para melhorar tanto os lucros como o faturamento.
Crie transparência e defina metas
Quantificar perdas de alimentos e atribuir responsabilidades por reduzi-las não é (ainda) uma ciência exata; as técnicas e métricas de mensuração ainda estão sendo discutidas e elaboradas. Mas isso não é desculpa para as empresas não fazerem nada. Um supermercado ou fabricante de alimentos deve procurar reunir informações direcionais precisas por meio de uma variedade de fontes e técnicas – por exemplo, entrevistar equipes internas, examinar dados dos fornecedores e revisar pesquisas de terceiros. Deve trabalhar com os fornecedores para entender e monitorar as perdas de alimentos, talvez utilizando protocolos facilmente encontrados online para medir as perdas de alimentos já na fazenda. Deve ainda fixar metas para a empresa e seus fornecedores, integrando visibilidade e redução das perdas em estruturas de incentivo. Por fim, deve ficar atento, ou, melhor ainda, participar dos esforços do setor para harmonizar os padrões de relatórios e certificação.
Empresas voltadas para o futuro estão se engajando ativamente com os fornecedores para mapear os “pontos nevrálgicos” onde mais ocorrem perdas de alimentos na cadeia de suprimentos e entender suas causas. Algumas empresas estão desenvolvendo (e oferecendo acesso público a) um banco de dados integrado do desempenho dos fornecedores em várias localidades. Outras vêm realizando auditorias externas anuais ou exigindo que terceiros avaliem o desempenho dos fornecedores neste tópico. Algumas têm adotado as melhores práticas disponíveis e utilizado tecnologias digitais, como blockchain, para tornar os produtos rastreáveis em todas as etapas da jornada entre a fazenda e a loja.
Ninguém deve esperar até que dados perfeitos estejam disponíveis; o importante é reunir informações suficientes para entender o alcance do problema. Um primeiro passo fundamental para criar um senso da urgência das mudanças é conscientizar as pessoas quanto ao volume das perdas de alimentos – e onde elas ocorrem.
Decida o que fazer – e faça
Nossa pesquisa revelou quatro alavancas que varejistas e fabricantes de alimentos podem utilizar para causar impacto significativo: minimizar as perdas durante a produção e o processamento, minimizar as perdas durante o transporte, vender mais daquilo que for produzido e evitar perdas estruturalmente (Quadro 4). Cada alavanca consiste em um conjunto de ações potenciais. Algumas exigirão investimentos substanciais e novas formas de trabalho. Todas gerarão resultados positivos, não só diminuindo as perdas de alimentos, mas também tornando a cadeia de valor mais eficiente, melhorando o EBITDA e reduzindo as emissões de CO2.
Não existe uma combinação de alavancas que seja adequada para todas as empresas; cada stakeholder precisará selecionar a combinação que melhor se adapte ao seu contexto específico. O Quadro 5 mostra exemplos de programas contra perdas de alimentos que um fabricante ou varejista de alimentos pode implementar.
Qualquer que seja o curso de ação escolhido, cada empresa precisa mudar fundamentalmente o modo como interage com os outros stakeholders do ecossistema alimentar. Seguem-se algumas formas específicas pelas quais fabricantes e varejistas podem abandonar o business-as-usual e dar grandes passos para enfrentar o problema das perdas de alimentos:
Trabalhar com fornecedores para evitar um descompasso entre oferta e demanda. Isso exigirá muito mais comunicação e transparência entre os integrantes da cadeia de valor. Os varejistas precisarão fornecer aos agricultores mais informações sobre a demanda esperada; por sua vez, os agricultores precisarão oferecer aos varejistas mais visibilidade de seus planos de produção. Algumas empresas estão começando a elaborar planos de longo prazo com seus fornecedores, trabalhando em conjunto para alinhar o volume e o mix das safras – não apenas para o próximo plantio, mas também para o seguinte e para os que vierem depois – reduzindo assim a incerteza para todos os stakeholders.
Reformular as práticas de procurement. A maneira de comprar alimentos tem que mudar drasticamente. É preciso deixar de lado uma visão comoditizada dos alimentos e o foco na gestão imediatista dos custos; em vez disso, pense em iniciar esforços colaborativos estruturados com fornecedores ou em formar parcerias focadas em inovação. Não escolha fornecedores com base apenas no preço. Leve em consideração o empenho em reduzir as perdas de alimentos quando for redigir contratos, criar estruturas de incentivo e estabelecer métricas de desempenho. Além disso, revise regularmente as especificações e procure oportunidades para torná-las menos rigorosas, sem comprometer a segurança alimentar ou prejudicar o sell-through [percentual do estoque vendido no período]. Por exemplo, pesquisas com clientes poderão mostrar ao varejista que os consumidores são hoje mais tolerantes a variações na cor dos produtos frescos do que no passado, ou que não prestam muita atenção ao tamanho de determinado tipo de fruta. Para fabricantes, revisar especificações para otimizar a redução das perdas tanto na fazenda como na fábrica poderá ajudar a diminuir os requisitos de volume.
Encontrar maneiras criativas de transformar perdas de alimentos em valor. Existe enorme potencial em vender um volume maior dos alimentos que os agricultores já produzem. Alimentos que seriam perdidos podem ser transformados em novos produtos e gerar negócios prósperos. Pense em dedicar recursos de P&D para criar novos fluxos de receitas a partir de alimentos não comercializáveis. A AB InBev, por exemplo, investiu $200 milhões em unidades de processamento para transformar subprodutos de cevada em um ingrediente de proteínas e fibras. Com isso, criou dois novos negócios: uma bebida proteica não láctea, vendida sob a marca Canvas, e um ingrediente proteico que a empresa hoje vende para outros fabricantes de alimentos.
Viabilize mudanças verdadeiras e duradouras
A redução das perdas de alimentos jamais será tratada como uma prioridade estratégica se não tiver o aval e o patrocínio da diretoria. De fato, em uma pesquisa informal com uma dúzia de líderes setoriais, dois terços apontaram a governança fraca como o maior obstáculo à implementação de programas de redução de perdas de alimentos em suas empresas.
Assim, um dos fatores mais importantes para assegurar mudanças significativas e duradouras é um modelo de governança forte no qual todas as funções – incluindo procurement, P&D, a cadeia de suprimentos, produção, marketing e finanças – prestem contas, tenham responsabilidades e objetivos claros, e disponham de KPIs nos níveis individual, funcional e corporativo. Designar um responsável para cada iniciativa de redução de perdas de alimentos e alinhar os parâmetros de sucesso ajudará a garantir o progresso. Novas métricas de desempenho podem incluir, por exemplo, o volume de alimentos perdidos, os lucros provenientes do upcycling [reaproveitamento criativo] ou as receitas obtidas com alimentos que teriam sido jogados fora.
A gestão dos stakeholders é outro fator crítico. Fornecedores, consumidores e outros integrantes da cadeia de valor podem ser persuadidos a se aliar para apoiarem – em vez inibirem – os esforços de redução de perdas. Fabricantes e varejistas podem promover a conscientização do problema – e de sua gravidade – entre agricultores e fornecedores, para que vejam as perdas de alimentos como uma ineficiência, não uma inevitabilidade. Do lado dos consumidores, programas de marketing direcionados e campanhas educacionais podem ajudá-los a entender como reduzir as perdas de alimentos – o que, por sua vez, permitirá a implementação de medidas cadeia de valor acima (por exemplo, especificações cosméticas menos severas para produtos frescos).
Na maioria das empresas hoje, a triste realidade é que as perdas de alimentos não são problema de ninguém. Nenhum indivíduo ou equipe assume responsabilidade e se dedica à questão. De certa forma, as empresas viveram até hoje uma situação privilegiada de não precisarem prestar muita atenção às perdas de alimentos. Mas isso está mudando: à medida que o mundo caminha para uma possível emergência alimentar e à medida que a conscientização pública do problema aumenta, os stakeholders externos ficarão mais atentos às perdas de alimentos e, com isso, se tornarão mais exigentes. E obrigarão varejistas e fabricantes a agir. Hoje, em suma, enfrentar a questão das perdas de alimentos não é apenas a coisa boa e certa a fazer; é também um bom negócio – e em breve não será mais opcional.