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A União Europeia se encontra em uma encruzilhada e enfrenta imensos desafios econômicos, tecnológicos e de defesa. Enrico Letta, diretor da Escola de Política, Economia e Assuntos Globais da Universidade IE de Madri – e autor do relatório “Much more than a market” [Muito mais que um mercado] de 2024, encomendado pelo Conselho Europeu – argumenta que a resposta para os problemas da Europa reside em um mercado verdadeiramente único, capaz de eliminar a dispendiosa fragmentação atual. Letta conversou com Massimo Giordano, sócio sênior da McKinsey, sobre uma série de questões, incluindo a necessidade de reformar os serviços financeiros da UE, expandir o setor de defesa e promover um ambiente propício à inovação. A transcrição a seguir foi editada para maior clareza e concisão.
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Massimo Giordano: Enrico, deixe-me começar com uma pergunta pessoal. Que tipo de europeu o senhor é? Como se sente sendo europeu?
Enrico Letta: Sou um europeu fervoroso, mas pragmático. Acredito firmemente que a Europa representa um importante conjunto de valores. Mas também penso que uma única Europa é algo imprescindível por uma simples questão de escala. Éramos todos países grandes quando o mundo era menor. Hoje, porém, o mundo é maior, e todos os países europeus – e repito, todos os países europeus – são pequenos em comparação com os gigantes atuais. Portanto, precisamos ser pragmáticos, unir forças, permanecer unidos e crescer.
Massimo Giordano: O senhor vem defendendo a reinvenção do mercado único há vários anos. Argumenta que o mercado único deve deixar de ser um espaço de comércio e se tornar um verdadeiro motor para a Europa. Que mudança ousada é essa que propõe? E como ela mudará a Europa?
Enrico Letta: Hoje os principais desafios são a necessidade de mais segurança e competitividade. No entanto, ao olharmos para o mercado único europeu, subitamente nos damos conta de que, por algum motivo, só concluímos metade do trabalho. Seja em serviços financeiros, telecomunicações ou energia, estas são áreas em que atuamos como 27, não como um só. E a fragmentação nos torna muito fracos no grande contexto mundial.
É por isso que a mensagem mais importante do meu relatório sobre o futuro do mercado único é conscientizar as pessoas de que concluímos esse projeto apenas pela metade. Mas é hora de unificar e concluir o trabalho fundamental de buscar segurança e competitividade. Se não o fizermos, continuaremos dependendo de outros, e isso não é bom para a Europa.
Massimo Giordano: O senhor mencionou os serviços financeiros. A Europa tem enorme vigor financeiro, com mais de um trilhão de euros em poupança domiciliar. Mas, todos os anos, vemos uma grande parte dessa poupança ser investida fora da Europa; algumas estimativas apontando que chegue a €300 bilhões por ano. Dado o seu pragmatismo, o que é possível fazer para direcionar nosso capital para empresas, infraestrutura, inovação e IA da própria Europa? Como podemos realizar essa mudança?
Enrico Letta: O ponto de partida dessa reflexão é o fato de que, no mundo de hoje, o investimento privado em áreas de interesse público – como inovação, infraestrutura, defesa e combate às mudanças climáticas – é absolutamente fundamental. Na Europa, porém, o setor privado não está muito bem posicionado para investir nessas áreas por um motivo bem simples: não somos um mercado financeiro; somos 27 mercados financeiros.
A fragmentação é a principal causa da nossa fragilidade, de modo que a necessidade de unificar mercados e serviços financeiros no âmbito europeu é primordial. Por que poupadores e investidores estão deixando a Europa? Porque o retorno é maior em outros locais. Logo, temos de lhes oferecer um retorno melhor aqui. Por isso a grande proposta do meu relatório é a criação de uma União de Poupança e Investimento capaz de estabelecer uma ponte entre poupança e investimento, uma ideia inédita na Europa.
No geral, os europeus esperam que haja financiamento público para investimentos; na realidade, porém, o verdadeiro divisor de águas será essa ponte entre poupança e investimento. A União de Poupança e Investimento é uma missão grande e complexa, mas absolutamente necessária para fomentar a competitividade da Europa como um todo.
Massimo Giordano: O capital privado teve papel fundamental na transformação da economia dos Estados Unidos, acelerando o crescimento e os investimentos das empresas. O mesmo está acontecendo na Europa, mas talvez possa acontecer mais rápido ou atrair mais investimentos. O que precisaria mudar para que haja essa grande transformação no movimento do capital privado?
Enrico Letta: A ideia principal por trás da transição do antigo projeto da União dos Mercados de Capitais da UE para essa nova União de Poupança e Investimentos é que se avance exatamente na direção que você mencionou. Mas não conseguimos, até o momento, concentrar todas as nossas energias em integrar os serviços financeiros em um mercado único.
Além disso, não conseguimos intensificar os investimentos privados nem mobilizar o capital privado para os grandes investimentos que hoje são necessários. No caso da inteligência artificial, por exemplo, o investimento privado faz toda a diferença. A escala importa, mas estamos fragmentados demais para mobilizar essa dimensão essencial do capital privado.
Esta é a ideia por detrás da União de Poupança e Investimento. Já capacitamos decisores de toda a Europa para criar essa ponte e transformar a poupança em ferramentas capazes de fortalecer a economia real com investimentos em inovação, inteligência artificial, infraestrutura, descarbonização, combate às alterações climáticas e, em última instância, segurança.
Pois a grande novidade na Europa nestes últimos três anos é o fato de não podermos mais considerar nossa segurança como algo garantido. Com todas as mudanças na política externa americana, precisamos, como europeus, ter a capacidade de gastar o que for necessário para garantir nossa própria segurança.
Ao mesmo tempo, e enfatizo este ponto como uma das mensagens mais importantes do meu relatório, devemos considerar a segurança sob uma ótica mais ampla. Segurança não se resume ao número de armas. Segurança significa independência energética. Significa um mercado único financeiro forte. Significa conectividade independente. Tudo isso requer um mercado único europeu unido, e devemos começar pelos serviços financeiros, que são absolutamente fundamentais para essa segurança e independência.
Massimo Giordano: Defesa e segurança são temas importantíssimos e aprecio a maneira como o senhor os concebe em termos tão abrangentes. O senhor certamente sabe que houve algumas declarações e compromissos de aumentar substancialmente o investimento em segurança. Contudo, temos 27 países discutindo questões aeroespaciais e de defesa. Como podemos superar a fragmentação e efetivamente escalar e acelerar tais investimentos?
Enrico Letta: Depois de muitos anos ouvindo a inequívoca mensagem americana sobre a necessidade de partilharmos verdadeiramente o fardo da segurança global e europeia, estamos enfim levando a questão a sério. E acredito que as decisões da última cúpula da OTAN nos levarão na direção de uma segurança europeia mais independente.
No entanto, devo destacar um dos pontos cruciais dessa discussão, a saber, que todos esses novos investimentos não serão suficientes se não pudermos trabalhar juntos em termos de compartilhar ferramentas, assegurar a interoperabilidade de nossos sistemas e, acima de tudo, consolidar e escalar nossa indústria de defesa.
Está absolutamente claro que a Europa precisa criar uma Airbus da indústria de defesa. Se não conseguirmos fazer isso, será extremamente complicado aplicar recursos com eficiência. Portanto, creio que um forte sinal de alerta é mais do que justificado aqui: tudo o que foi decidido em conjunto nesses últimos meses depende da interoperabilidade, o que exige decisões, comportamentos e atitudes que, para ser sincero, não vejo sendo discutidas.
É por isso que precisamos de uma liderança europeia forte, nos Estados membros e em Bruxelas, capaz de obrigar todos os 27 países a trabalharem juntos. É absolutamente essencial para nosso futuro, para nossa segurança e para nossa competitividade. Pois se gastarmos todo esse dinheiro na aquisição de equipamento militar não europeu, teremos um problema legítimo. Por isso temos de trabalhar juntos na interoperabilidade.
Massimo Giordano: O capital, em um mercado mais unificado, precisa favorecer a interoperabilidade não só entre grandes organizações, mas também entre as muitas empresas de médio porte que estão entrando no mercado. Conversamos há alguns anos em Davos sobre o 28º Regime, que vem despertando um interesse crescente. Trata-se basicamente de uma estrutura jurídica para empresas operarem em todos os 27 Estados sob um regime verdadeiramente europeu. Como isso está indo? Existe interesse real ou são apenas algumas pessoas tentando levar a ideia adiante?
Enrico Letta: Massimo, o encontro que você organizou em janeiro de 2024 em Davos sobre essas questões foi absolutamente decisivo para trazer à baila essa nova estrutura jurídica aventada, conhecida como 28º Regime. Senti o interesse dos participantes pela proposta e imediatamente comecei a desenvolver a ideia, que agora está nas mãos da Comissão Europeia.
Fiquei muito satisfeito com o plano estratégico apresentado pelo vice-presidente Séjourné, em nome de toda a Comissão Europeia, visando a criação de um mercado único, que é um primeiro passo para surgirem novas startups. Para mim, é um bom começo. Penso que devemos estender o modelo ao sistema inteiro, mas é possível que possamos nos concentrar em diferentes necessidades ao mesmo tempo.
Massimo Giordano: Em sua opinião, o que o setor privado pode fazer para avançarmos nessa direção?
Enrico Letta: Creio que a palavra mágica seja “advocacy”, advogar algo ativamente. O setor privado deve ser mais persuasivo e proativo ao explicar aos governos nacionais e às instituições europeias que chegou a hora de realmente levarmos em consideração a instabilidade política mundial. Diante do sem-número de conflitos, guerras comerciais etc., a União Europeia precisa utilizar suas ferramentas internas em vez de pedir que alguém venha nos resgatar.
Dispomos de muitas ferramentas que poderiam ser utilizadas com mais eficácia e devemos começar com as duas joias da coroa: o euro e o mercado único. Pois somente quando aceitarmos que o mercado único continua inacabado é que saberemos como mobilizar todas as nossas energias e vencer a corrida pela competitividade.
Por isso, peço aos que nos ouvem que considerem um envolvimento mais expressivo do setor privado. Exigir reformas corajosas, mais integração, maior expansão e menos fragmentação pode impulsionar a competitividade europeia. Também pode ajudar a desideologizar todo o debate público sobre a Europa, visto que não se trata da bandeira europeia versus nossas bandeiras nacionais, ou vice-versa.
É exatamente o oposto: precisamos de uma discussão pragmática sobre o fato de que, no mundo de hoje, a fragmentação entre 27 Estados membros significa fraqueza. Se formos mais integrados, poderemos vencer em nível global, e é disso que precisamos. E é por isso que um engajamento mais enérgico do setor privado é absolutamente necessário.
Massimo Giordano: Temos visto um diálogo muito mais intenso do que no passado e é ótimo ver nossos líderes, tanto do setor público como do privado, muito mais empenhados do que antes. Penso que o diagnóstico é bem claro para todos. A verdadeira questão é como fazer as coisas acontecerem. Enrico, o senhor tem viajado pela Europa nos últimos anos. Pode nos dar algum exemplo notável de excelência europeia?
Enrico Letta: Fiquei bastante impressionado com o vigor dos nossos programas de educação, formação, pesquisa e inovação oferecidos pelo Erasmus+ e pelo Horizonte Europa. Ao viajar pelo mundo, ouço sempre as pessoas comentarem sobre essas ferramentas excepcionais, citando a necessidade de reproduzi-las em seus países. E quando conversamos com os jovens europeus, ficamos com a sensação de que criamos alguns programas efetivamente úteis.
Mas temos de intensificar, expandir e alargar essas ferramentas que se revelaram tão bem-sucedidas no passado, e transformá-las em verdadeiros motores da competitividade europeia. Não é verdade que a Europa não consegue inovar; somos muito bons em inovação. Contudo, não somos bons em criar um ambiente propício que incentive as pessoas a investir em inovação e promova uma mentalidade inovadora.
Nossa maior preocupação é o êxodo de jovens europeus para outros países em busca de acesso mais fácil a financiamentos para investir e de um cenário menos avesso ao risco, diferente do que se vê com tanta frequência aqui.
Devemos confiar nessa nova geração e eliminar os modos de pensar conservadores, pessimistas e hostis ao risco tipicamente europeus. Sabemos que muitas pessoas em todo o mundo querem viver, estudar e investir na Europa. Nossa grande meta deve ser eliminar os obstáculos que diminuem nossas chances de sucesso futuro. Nosso destino está em nossas mãos. Sabemos o que fazer e agora temos de agir.
Massimo Giordano: Muito obrigado, Enrico. Essa conversa precisa continuar.
Enrico Letta: O prazer foi meu. Obrigado.