“O processo criativo é fabulosamente imprevisível. É impossível antever uma grande ideia.”

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Em 2019, Jony Ive deixou a Apple para fundar uma agência de criação, LoveFrom, com seu amigo e colaborador de longa data Marc Newson. LoveFrom é um coletivo pequeno, com cerca de 40 funcionários, mas atende algumas empresas e pessoas bastante notáveis, incluindo Airbnb, Ferrari e o novo rei da Inglaterra, Charles III. Ive é um estudioso obsessivo do que é preciso para desenhar e criar produtos e serviços de excelência no contexto de uma grande corporação. Em conversa com a diretora de marketing da McKinsey, Tracy Francis, e o diretor editorial do McKinsey Quarterly, Rick Tetzeli, Ive discute a fundo o que um CEO deve fazer para promover design de alta qualidade, a fragilidade das novas ideias e como a dinâmica de grupo inibe e estimula a criação. Segue uma versão editada dessa conversa.

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Rick Tetzeli: O que contribui para melhorar o relacionamento entre o CEO e o chefe de design? Qual é o potencial desse relacionamento?

Jony Ive: Essa pergunta, na verdade, levanta questões grandes, importantes e profundas: Por que criar uma corporação? Por que se reunir com outras pessoas, se não para fazer produtos ou serviços? Sempre achei que a ideia de empresa é um mal necessário para tornar uma ideia relevante, sabe? [risos] Os produtos que desenvolvemos e lançamos no mercado requerem um grupo de pessoas com expertise em diversas áreas; por sua vez, em tal grupo existe sempre um processo de criação e desenvolvimento de produtos e soluções. Por que, então, um CEO não haveria de querer envolver-se intimamente nesse processo?

Rick Tetzeli: O que um CEO pode fazer para cultivar o melhor design possível? Como chefe de design, o que você precisa de um CEO?

Jony Ive: O relacionamento mais produtivo que existe é trabalhar com alguém que tenha uma compreensão prática – não acadêmica – da criação. No site da LoveFrom, mencionamos que trabalhamos com fundadores e líderes. E os fundadores são criativos por definição – são eles que tiveram a ideia por trás de sua empresa.

Para tornarem essa ideia pertinente e relevante, eles precisam trabalhar com um vasto número de pessoas. Contudo, a natureza das ideias e do processo criativo é um tanto particular e incomum. A criação é uma atividade que não condiz fácil ou naturalmente com grandes grupos de pessoas.

O coletivo LoveFrom, de Ive, criou o Selo Terra Carta, que identifica empresas que criam mercados sustentáveis.

Em todo grande grupo, as pessoas geralmente querem se relacionar entre si, conviver e ser sociáveis. Mas nenhum processo que seja imprevisível se encaixa bem ou naturalmente em uma situação com muitas pessoas. Por isso, elas tendem a valorizar atividades previsíveis.

Isso não significa que você vá intencionalmente deixar de lado ou prejudicar as atividades previsíveis. Mas esta é a natureza da criação. Uma das coisas que percebi é que, quando se tenta criar no contexto de um grande grupo de pessoas com variada gama de expertises, elas tendem a ser atraídas para os atributos ou características de um produto que possam ser facilmente medidos. Se você quiser se relacionar bem em um grupo de pessoas muito diferentes e ser visto como sociável, engajado e conectado, será muito mais fácil conversar sobre coisas que possam ser medidas com números. É por isso que escolhemos falar sobre prazos, custos, velocidade ou peso. Como nossas formações são muito diferentes, essa é uma conversa fácil, com a qual todos se sentem à vontade. Entendo perfeitamente.

Mas há um problema insidioso nisso: a suposição perigosa de que estamos tendo essas conversas porque são as únicas que importam. Na verdade, as conversas e preocupações realmente importantes são muito difíceis, porque não podemos atribuir um sistema de números que nos permita fazer os julgamentos relativos que precisam ser feitos.

Eu costumava pensar que esse tipo de conversa era um ataque pessoal ou uma afronta à prática de criar, mas fui aprendendo ao longo dos anos que é apenas uma consequência natural e muito previsível de haver um grande número de pessoas reunidas conversando sobre o desenvolvimento de algo.

Existem muitos mecanismos diferentes de enfrentamento para lidar com esse desafio. Acho extremamente útil entender a dinâmica natural que parece ocorrer quando várias pessoas diferentes se reúnem para resolver um problema.

Tracy Francis: Você falou de fundadores. Se aceitarmos que a inovação é importante para o bem-estar de qualquer empresa, será que uma organização que não é liderada por seu fundador pode ter boas conversas sobre design como as que você está descrevendo?

Ive criou este emblema elegante para a coroação do rei Charles III em 6 de maio de 2023.

Jony Ive: É preciso começar pelo fato de que não haverá progresso se não houver um entendimento sobre a natureza da criação. E, note bem, não utilizei a palavra design, mas sim criação.

Tracy Francis: Tem razão. Reduzi demais a questão. Trata-se de criação, não apenas de design. Pois então, como você aborda o processo criativo com os líderes da empresa?

Jony Ive: Algumas das pessoas mais criativas com quem já trabalhei foram das áreas de engenharia e marketing, não apenas design. E algumas das pessoas mais dogmáticas que conheci foram das áreas marketing, design e engenharia. [risos] O mais importante é que haja um verdadeiro apetite para criar – e, consequentemente, uma motivação para realmente tentar entender a natureza do processo, entender como a curiosidade funciona e entender quais podem ser os obstáculos à criação.

O processo criativo talvez seja pouco familiar para muitas pessoas. Por isso, muitas vezes, elas tentam institucionalizá-lo, acreditando que, como ocorre com muitas outras atividades, seja possível esmiuçá-lo em uma planilha. Querem dizer com isso que, se houver mais pessoas envolvidas e tivermos tempo suficiente, é aqui que iremos chegar. E, de fato, há um monte de atividades de engenharia que são assim. Com software, por exemplo, quando se está tentando corrigir bugs, o processo terá algumas partes bastante previsíveis.

Em geral, no entanto, acho que deve haver engajamento e a aceitação do fato de que o processo criativo é fabulosamente imprevisível. É impossível antever uma grande ideia.

Mas é possível aumentar a probabilidade de surgirem boas ideias, e é por isso que dou tanta atenção ao processo criativo. E, em parte, também em prol da minha sanidade, para que eu consiga lidar com esse sentimento de “Oh, não, aqui estou de novo, olhando mais uma vez para essa folha de papel em branco”. É um enorme encorajamento e consolo lembrar a mim mesmo quantas vezes já estive nessa posição, sentindo-me sem ideias, totalmente empacado, com todo o fardo e a responsabilidade das pessoas que estão me aguardando.

É um enorme encorajamento e consolo lembrar a mim mesmo quantas vezes já estive nessa posição, sentindo-me sem ideias, totalmente empacado.

Alguns líderes de design enfrentam isso tornando-se ligeiramente desconectados. É uma maneira de lidar com esse impasse e com o senso agudo de ser responsável e ter que prestar contas. Pessoalmente, tento superar isso prestando muitíssima atenção ao processo, à biografia de uma ideia, às ferramentas que parecem fazer a diferença. Desde a faculdade, sou obcecado pelo modo como pensamos, como damos corpo a um pensamento.

Você verá que o pessoal de criação costuma ser obcecado por processos e ferramentas. Uma ferramenta fundamental para mim é escrever muito. E escrevo porque descobri na escola de arte que só conseguimos desenhar uma pequena porcentagem dos atributos de um objeto. Se eu lhe desenhar isso [ergue um copo], estarei transmitindo apenas 20% da sua natureza. Você não terá noção do peso do copo, do seu material ou temperatura. Não terá a menor noção da como ele reage ao meio ambiente. Assim, escrever me ajuda a formular melhor o problema. Muitos erros são cometidos no momento de formular o problema, porque talvez já estejamos descartando 60%, 70% das ideias possíveis.

Isso só será prático, detalhado e completo se houver um entendimento da natureza do processo.

Rick Tetzeli: O que você quer dizer com “biografia de uma ideia”?

Jony Ive: Se você teme que nunca terá outra ideia na vida, é inevitável que se pergunte: Como tive as ideias anteriores? E você passará a sempre prestar atenção às conversas, caminhadas, textos, desenhos, maquetes, protótipos – a tudo o que lhe foi de valia das outras vezes.

Acho a natureza da criação ao mesmo tempo aterrorizante e maravilhosa. E tenho a imensa sorte de poder participar desse processo com outras pessoas. Adoro a ideia de que, certo dia, simplesmente não haja ideia alguma. Na terça-feira, não há ideia. Mas na quinta-feira, há uma ideia. E aí o mais assustador é: qual quinta-feira?

Em minha experiência, uma ideia começa a ganhar vida como um pensamento incipiente, que tende a evoluir para uma conversa. Aquilo em que estamos pensando se transforma em uma conversa e, em seguida, é colocado por escrito. Mas ideias são muito frágeis. Se você refletir um pouco sobre a natureza das ideias, tudo o que saberá com alguma certeza absoluta – e este é um ponto realmente bizarro e importante, que remonta ao que eu dizia antes sobre pessoas em grandes grupos precisarem de absolutos – é que, quando se tem uma ideia, não há absoluto algum, exceto todos os problemas que a ideia em si implica. Acerca do potencial latente da ideia, nada há de certo. Onde há muita certeza é: “Bem, não dá para fazer isso por causa disso. Vou lhe mostrar a prova de que não é possível fazer isso.”

A diferença entre uma ideia e um produto é que os problemas foram resolvidos. Quando alguém me diz, “Bem, você não pode fazer isso por tais e tais motivos”, significa apenas que ainda há problemas a serem resolvidos. Se puderem ser resolvidos, a ideia passa por uma transição e se torna uma coisa. Se não puderem ser resolvidos, a ideia permanece apenas uma ideia.

Dá para ver qual é minha obsessão aqui. É uma obsessão que nasce do meu próprio esforço e de levar a responsabilidade muito a sério. Em vez de simplesmente tentar desaparecer em um estúdio de design e meio que me desconectar, eu realmente tento entender quais são os desafios em termos de uma prática criativa no contexto de um grupo grande de pessoas.

Tracy Francis: Você trabalhou com muitas instituições com legados extraordinários. Como as longas histórias dessas instituições afetam seu processo criativo?

Jony Ive: Bem, como você sabe, eu sou inabalavelmente prático. Neste momento, tenho a sorte fenomenal de estar colaborando com dois indivíduos extraordinários, Brian Chesky e John Elkann. Brian comanda o Airbnb e John dirige a Exor, a empresa da família Agnelli, e também a Ferrari – duas empresas com histórias muito diferentes, que ocupam lugares muito diferentes na sociedade e na cultura.

Brian formou-se em design. Frequentou a Rhode Island School of Design. John não tem essa formação e suas responsabilidades vão muito além da Ferrari. Mas John é uma pessoa incrivelmente criativa e reflexiva, que enfrenta desafios e problemas de negócios da mesma maneira criativa, reflexiva e curiosa necessária para criar e desenhar uma Ferrari.

Não importa se a empresa tem uma história longa ou curta, vejo isso apenas como uma das muitas considerações de design. Estou muito mais interessado na abordagem do líder e é também isso o que mais me afeta. Adoro trabalhar com pessoas curiosas. Posso trabalhar muito de perto, de modo muito frutífero, com qualquer pessoa curiosa.

Adoro trabalhar com pessoas curiosas. Posso trabalhar muito de perto, de modo muito frutífero, com qualquer pessoa curiosa.

Um dos benefícios de trabalhar de perto com um grande número de pessoas curiosas é que aprendemos como uma comunidade. Surge um poder incrível quando descobrimos e aprendemos junto com outros. No final de um projeto em grupo, busco ver duas coisas: o que fizemos, é claro, mas muito mais importante, o que aprendemos. Se você não está apenas de passagem, se realmente se comprometeu com um relacionamento, o que se aprende é obviamente muito, muito mais importante.

Durante a COVID-19, eu me dei conta da importância da vitalidade e de todas as coisas que alimentam nosso elã vital. As pessoas que começaram aquele período de lockdown e relativo isolamento cheias de vitalidade saíram-se muito melhor do que aquelas que não tiveram o benefício desse impulso. Isso deixou bem claro para mim, do ponto de vista da criação, o que é que ajuda a criar esse impulso vital. Aprender é extremamente importante. Se você não for curioso, se julga que estar certo é mais importante do que aprender, terá muita dificuldade em construir e manter qualquer tipo de impulso vital.

Rick Tetzeli: Portanto, mesmo em um momento em que os talentos são altamente móveis e há muita disrupção, a continuidade é crucial.

Jony Ive: Sim. É um verdadeiro privilégio poder atuar como designer, ou resolver um problema, como um grupo e, mais tarde, voltar a fazê-lo com o benefício de tudo o que se aprendeu da primeira vez. Sempre me senti muito afortunado na Apple quando podíamos desenhar uma terceira ou quarta versão. Porque se você estiver prestando atenção, a terceira ou quarta versão será beneficiária de um aprendizado enorme.

Tracy Francis: Houve alguma evolução ou mudança recente que tenha modificado a maneira como você pensa o processo criativo?

Jony Ive: Para falar a verdade, quando tento pensar em maneiras de ser útil e de resolver o que poderão vir a ser problemas no futuro, sempre me pego olhando para o passado. Presto a máxima atenção ao processo criativo e ao caminho e à jornada das ideias. Estou realmente mais interessado em história de maneira geral.

Há algo que eu acho bem curioso. Não sei se é parte da condição humana, mas sempre fico espantado com a rapidez com que nós, como cultura, como sociedade, chegamos a esse ponto em que meio que presumimos que certo produto ou serviço é inevitável.

Sempre fico espantado com a rapidez com que nós, como cultura, como sociedade, chegamos a esse ponto em que meio que presumimos que certo produto ou serviço é inevitável.

Como alguém envolvido nesse processo, eu me preocupo muito com isso. E me preocupo porque faz com que pessoas deixem de refletir sobre tudo o que foi preciso para chegarmos onde chegamos. Não sei bem se é razoável querer que prestemos um pouco mais de atenção [ao passado]. Afinal, não faz muito tempo que ainda enviávamos faxes uns para os outros. Mas prestar atenção ao passado nos fornece um contexto realmente valioso para entendermos o que estamos fazendo. Para as ideias, esse contexto é muito importante, ainda mais porque as ferramentas com que trabalhamos hoje são incrivelmente poderosas.

Tracy Francis: Uma última pergunta. Você trabalhou em produtos como o iPod e o iPhone, que reinventaram completamente um amplo conjunto de sistemas. Você sempre reimagina o sistema como um todo, questionando suas premissas subjacentes? Como você reflete sobre reimaginar sistemas inteiros?

Jony Ive: Não é bem assim. Eu simplesmente começo com as pessoas e tenho muito claros meu lugar e minha contribuição. Gosto dessa ideia de que o que faço está a serviço da humanidade, da cultura, das pessoas. É um lugar em que me sinto muito à vontade. Nossa motivação não é apenas o que nos define em termos de nossos valores, mas é também o que nos incita a fazer o que fazemos. Não consigo pensar em um estímulo mais profundo e poderoso do que ter ciência de que o que faço é para os outros, não para mim.

Às vezes, uma ideia implica ou requer uma inovação que vai além do produto – como em um sistema. Outras vezes, não. Depende muito da tarefa. Tudo o que me importa é tentar honrar a espécie, tentar tornar as coisas melhores. É com isso que me importo. É algo que não se pode medir com números e que certamente não se pode medir com vendas. É algo ao qual é muito difícil aplicar uma métrica. Mas está muito claro na minha cabeça.

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