‘Há apenas um mundo e ele deve ser o espaço de todos’

Há apenas um mundo e ele deve ser o espaço de todos", diz Linamara Battistella, professora de Medicina Física e Reabilitação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Linamara é professora, pesquisadora e coordenadora de um grupo de trabalho da Organização Mundial da Saúde com foco na melhoria do acesso das pessoas com deficiência à reabilitação e aos serviços de saúde.

De 2008 a 2018, Linamara atuou como Secretária de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo e ajudou a estabelecer a política nacional de apoio aos direitos de mais de 18 milhões de pessoas no Brasil que vivem com algum tipo de deficiência.

Como parte do McKinsey Health Institute (MHI's) Conversations on Health, Linamara conversou com Marcus Frank, líder geográfico do MHI na América Latina.


Marcus Frank: Professora Linamara, o que a levou a se dedicar a essa área de reabilitação? 

Linamara Battistella: Na infância e adolescência atuei na TV, fazendo novela, interpretando criança com deficiência. Nos anos 1970, na universidade, tive colegas com deficiência. A minha geração foi a geração da poliomielite, década de 1950. Ao escolher uma especialidade certamente considerei essas experiências. Além disso, tive ótimos professores. Muitas das pessoas da minha turma tornaram-se fisiatras (médicos com formação na especialidade de Medicina Física e Reabilitação).

Marcus Frank: Quais condições são consideradas deficiência? E quantas pessoas são impactadas globalmente?

Linamara Battistella: As estatísticas das Nações Unidas mencionam uma em cada sete, o que significa que mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo têm algum tipo de deficiência. As deficiências tradicionais são deficiência visual, cegueira ou visão muito comprometida, pessoas que precisam de dispositivos ópticos para ter uma interação mínima com seu ambiente; ou os deficientes auditivos, que podem precisar de um implante ou aparelho auditivo. Há também os vários tipos de deficiências físicas, como amputações decorrentes de acidentes, paralisias em virtude de lesão medular e deficiências congênitas.

Doenças como o Acidente Vascular Cerebral (AVC) que também pode levar a limitações funcionais. Por fim, a deficiência intelectual, que não deve ser confundida com a doença mental. Há, ainda, as pessoas com dificuldades de aprendizagem, que podem ter dificuldade em se comunicar, mas que têm as competências e condições para se desenvolverem dentro do modelo de sociedade inclusiva que temos hoje. 

Temos então quatro áreas – mental ou intelectual, física, visual e auditiva – que juntas abrangem cerca de treze milhões de indivíduos. Por exemplo, há deficientes visuais que necessitam de uma lupa, mas com ela podem fazer quase tudo, e há aqueles que são completamente cegos e necessitam do apoio uma bengala para sua mobilidade.

Da mesma forma, existe uma ampla gama de condições dentro das deficiências físicas. Você pode ter um amputado que, auxiliado por uma prótese, pode fazer tudo o que você faz. Existem também deficiências transitórias das quais as pessoas se recuperam. Alguém pode ter um derrame, ficar paralisado por um tempo, mas depois se recupera. É chamada de deficiência transitória. Em outras pessoas, especialmente aquelas com comorbilidades existentes, um acidente vascular cerebral pode ser mais grave e a pessoa nunca recupera totalmente. Esta é uma deficiência permanente.

Agrupamos todas as deficiências, temporárias ou permanentes, sob o mesmo guarda-chuva, porém as necessidades relacionadas a saúde e o investimento associado a elas são diferentes.  

Marcus Frank: Como abordar a acessibilidade para pessoas com graus de deficiência diferentes?

Linamara Battistella: Essa pergunta não é apenas interessante, é desafiadora. Quando você aborda a acessibilidade, há pelo menos sete dimensões a serem consideradas. O mindset é o mais importante deles. Se pudéssemos explicar a todos, pessoas com e sem deficiência, que vivemos todos no mesmo mundo e temos direito aos mesmos bens e serviços, certamente seríamos capazes de construir uma sociedade melhor e menos onerosa.

No Brasil, a acessibilidade física, arquitetônica e ambiental, é exigida legalmente. Tudo o que depende da arquitetura e do ambiente deve ser acessível. Imagine quando você convida alguém para jantar em sua casa, você pergunta sobre alergias e qual bebida prefere. Não perguntamos, por exemplo, se são capazes de cortar seu próprio bife ou de ver a comida, apesar de serem limitações  que alguém pode ter.  Então temos acessibilidade arquitetônica e ambiental, além da atitudinal. Reconhecer para desenvolver metodologias que abracem a todos. Isso também é acessibilidade.

Temos acessibilidade instrumental e de comunicação. Uma pessoa com deficiência visual será muito mais produtiva se receber as ferramentas certas, como um teclado Braille. Um intérprete de língua de sinais ou legendas podem ajudar os deficientes auditivos a entender tudo o que dizemos.

Por último, mas não menos importante, algo que tenho focado há algum tempo, é a acessibilidade digital, já que o mundo digital pode e deve ser totalmente inclusivo.

Somos todos iguais atrás de uma tela. Acessibilidade digital não só promove a igualdade de direitos, como cria oportunidades para que todos possamos estar juntos o tempo todo. Existe legislação [no Brasil] para garantir que os sites sejam acessíveis, que os instrumentos digitais sejam acessíveis. Ainda não é usada com a frequência que gostaríamos, mas já é hoje uma pauta na Educação, no mundo do Trabalho e na área da Saúde. A acessibilidade digital aumenta oportunidades e revela equidade. É isso que vai tornar o mundo melhor.

Marcus Frank: Sempre pensamos na Internet como um meio de inclusão social e econômica. Creio que também aprendemos que ela desempenha um papel muito importante na inclusão das pessoas com deficiência.

Linamara Battistella: Sim! Pessoas com e sem deficiência! Se têm ou não deficiência, não importa. As pessoas com deficiência têm direitos e podem ajudar e contribuir para a construção de uma sociedade com mais equidade.

Marcus Frank: O que você está dizendo ressoa com o McKinsey Health Institute. Já que olhamos para a saúde de forma ampla incluindo a saúde física, mental, social e espiritual. Quando olhamos para a saúde desta forma mais ampla, e também consideramos a acessibilidade, o que podemos fazer para promover a saúde e o bem-estar geral das pessoas com deficiência?

Linamara Battistella: A felicidade é o principal produto da sociedade moderna. É algo que buscamos constantemente. Como medimos nossa capacidade de sermos felizes? Pelo pertencimento. Se você tem um grupo e se sente parte desse grupo, você está mais próximo da felicidade plena.

Marcus Frank: É o que o McKinsey Health Institute chama de saúde social.  

Linamara Battistella: Saúde não é ausência de doença. Saúde é o completo bem-estar bio-psico-social. Não há outra maneira de fazer parte de um ambiente que não seja pelo pertencimento. Essa estratégia deve ser fortalecida como um importante elemento da saúde mental. 

Marcus Frank: Com base em sua experiência, como indivíduos, empresas e governos podem ser mais eficazes em colaborar para a inclusão e promoção da acessibilidade?  

Linamara Battistella: É preciso um arcabouço legal, alguma forma de investimento para que se possa construir essa acessibilidade, viabilizando a chegada dos trabalhadores com deficiência. A vida em sociedade exige regulação permanente. Conhecemos todas as leis de trânsito, mesmo que nem sempre as cumpramos.

Estamos familiarizados com as regras sociais, e isso inclui abraçar as pessoas com deficiência. Há apenas um mundo, e ele deve ser o espaço para todos! Todos nós precisamos expressar nossas preocupações e ansiedades e fazer parte de grupos diversos. Para que esse sentimento de pertencimento chegue às indústrias de transformação, às organizações de serviços, ao agronegócio, às universidades, nós precisamos de instrumentos legais que motivem as empresas a adotarem a acessibilidade, seja por meio de isenções como premiação, ou multas, como punição.

Não podemos deixar ninguém para trás. Precisamos de todos, e todos devemos estar aptos em todos os ambientes.

Marcus Frank: Como a pandemia trouxe novos desafios para trabalhar com acessibilidade? Quais são os desafios que não existiam há alguns anos e que agora, como profissionais e líderes nesta área, devem ter em mente?

Linamara Battistella: A pandemia revelou um lado único de nossas vidas. Impossibilitados de sair de casa, com acesso limitado a bens e serviços, e até mesmo dificuldade de comunicação com familiares próximos foi suficiente para percebermos que a transformação digital e a proximidade são possíveis. As pessoas com e sem deficiência podem ser beneficiadas pelos serviços remotos, pela saúde digital. A sociedade aprendeu que não são as barreiras de trânsito ou arquitetônicas que nos impedem de estar próximos. Pelo contrário, somos ameaçados o tempo todo por epidemias, pela violência, por outros elementos que estão fora do controle da sociedade. Podemos nos aproximar por outros meios. O mundo digital propicia o desenvolvimento de alianças seguras e fraternas que unirão as pessoas porque, mais uma vez, somos todos iguais atrás de uma tela. Todos somos capazes, basta termos as ferramentas e instrumentos adequados.

Marcus Frank: É quase como quebrar um paradigma, não é?

Linamara Battistella: Sim, quebrando paradigma! Primeiro o sentimento de limitação, agora uma dimensão de que, por exemplo, posso participar num evento na Nova Zelândia sem sair do meu escritório. É hora de usar o mundo digital para fazer todas as coisas que não fizemos no mundo analógico.

Marcus Frank: Conte-nos sobre seu trabalho como coordenadora do grupo de diretrizes de acessibilidade da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Linamara Battistella: Sou membro deste grupo de trabalho da OMS desde 2012, desenvolvendo formas alternativas de medir o que é saúde, o que é doença e o que significa estar fora do mundo produtivo. Há um indicador que é muito melhor do que a idade; é a chamada Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF).

O referencial da CIF expressa funcionalidade e também se refere à longevidade. Estamos vivendo mais, por isso, precisamos permanecer funcionais por mais tempo. Também estamos mudando como vemos o sistema de saúde. [Durante anos] acreditávamos que o grande desafio eram as doenças crônicas, não infecciosas. Como as pessoas vivem mais, terão mais ataques cardíacos, mais derrames. Também há infecções, [que] causam limitações duradouras. Agora sabemos que ambos são um problema – doenças crônicas não infecciosas e doenças infecciosas. Por isso, devemos desenvolver uma estrutura que inclua medicamentos e medidas físicas, nossa principal área de pesquisa, para garantir que os indivíduos impactados possam ser produtivos.

Existem indicadores claros para medir o tempo de afastamento do trabalho devido à deficiência, que impacta a produção e, consequentemente, o custo real para o país. Essa métrica é importante no que se refere à experiência de viver uma vida produtiva mais longa. Quando crianças, costumávamos ouvir falar de pessoas que começaram a trabalhar aos 15 anos e se aposentaram aos 49. Hoje, pessoas de 60 anos estão tendo filhos, estão no terceiro casamento, estão construindo empresas... Tudo mudou. A produção nos acompanha ao longo da vida.

Marcus Frank: Como muitas pessoas estão começando a trabalhar mais tarde na vida, e trabalhando mais, a idade não é necessariamente uma métrica que devemos usar, certo?

Linamara Battistella: Sim, você precisa de outra métrica. Ao investigar essas questões que favorecem a qualidade de vida, encontramos outra variável que requer maior atenção - mudança de estilo de vida, o sedentarismo. Este é possivelmente o veneno mais relevante que afeta a humanidade no momento. Para combater isso como medida de saúde, começamos a buscar estratégias terapêuticas. Quando uma pessoa sai do hospital, ela está sob controle, mas não curada. Uma cura real requer que, juntamente com o tratamento clínico, suas capacidades funcionais sejam ajustadas. Uma pessoa pode ter um stent após um ataque cardíaco e ser hemodinamicamente estável, mas ainda precisa melhorar sua condição funcional para andar e subir escadas. É essa funcionalidade que vai mantê-lo saudável. Uma pessoa com uma doença mais significativa, como um AVC, terá limitações, como dificuldade de comunicação, mas não podemos simplesmente cruzar os braços e devolvê-la à sociedade com essas limitações. Por isso, trabalhamos para ajudá-la a se comunicar, retomar os movimentos funcionais e alcançar o grau máximo de independência. A saúde hoje é medida pela extensão da independência funcional, e não pela ausência de doença. A medicação é apenas parte do tratamento. Não há saúde sem funcionalidade.

Marcus Frank: Há mais alguma coisa que queira partilhar sobre reabilitação e acessibilidade para pessoas com deficiência?

Linamara Battistella: As empresas ganham com a inclusão de pessoas com deficiência. Acredito que, em parte, as melhorias na tecnologia existem hoje por causa desse universo de pessoas com deficiência.

No Brasil, estamos falando de um número significativo de pessoas: milhões de indivíduos, ou um em cada sete habitantes. Há uma questão social e humana, mas também uma questão empresarial a considerar. [As pessoas com deficiência] são consumidores, compram roupas, dirigem carros, viajam. As empresas [em todo o mundo] se beneficiariam em melhorar suas ofertas para essa população.

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